Por Alberto Carbonar e Fábio Maschio
Resumo — A IN RFB nº 2.288, de 30/10/2025 (DOU 10/11/2025) alterou a IN RFB nº 2.055/2021 e criou um regime específico para habilitação de créditos amparados em mandado de segurança coletivo, com exigências documentais e condições de legitimidade (objeto específico, filiação e adequação territorial/finalística) e limitação temporal do crédito a fatos geradores posteriores à filiação. Há convergência com o STF ao coibir “associações genéricas”, mas a exigência de filiação prévia e a restrição de pretéritos colidem, para valores anteriores, com a tese do Tema 1.119/STF e com a orientação do STJ em substituição processual, impondo interpretação conforme e sinalizando contencioso.
A Receita Federal do Brasil (RFB) promoveu, em 10 de novembro de 2025, a publicação da Instrução Normativa (IN) RFB nº 2288. Essa nova regulamentação estabelece critérios adicionais e restritivos para a habilitação e o uso de créditos tributários reconhecidos em ações judiciais coletivas, particularmente aquelas impetradas por associações e sindicatos. Embora a RFB justifique a medida como um esforço para combater fraudes e abusos, as disposições da IN levantam significativas preocupações quanto à sua constitucionalidade e legalidade, colocando-a em franco conflito com a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal (STF).
As novas regras introduzem o art. 103-A na IN 2.055/2021: quando o título judicial não delimitar beneficiários, o deferimento da habilitação depende de: (i) o substituto (associação/sindicato) possuir objeto determinado e específico à época da impetração; e (ii) o substituído comprovar filiação/ingresso na categoria dentro da abrangência territorial e finalística do substituto à época da impetração. O § 1º limita o direito creditório do substituído a fatos geradores posteriores à filiação e condiciona-o à manutenção do vínculo. O art. 105 passou a prever o indeferimento quando não atendidos os arts. 103 e 103-A, quando o MS coletivo tiver sido impetrado por associação de caráter genérico ou quando a filiação/ingresso ocorrer após o trânsito em julgado do título coletivo.
Estas exigências representam o ponto central da controvérsia e se chocam diretamente com entendimentos já pacificados pela mais alta corte do país.
No plano constitucional, o regime jurídico da tutela coletiva distingue duas hipóteses relevantes para os efeitos subjetivos do mandado de segurança coletivo: (i) a substituição processual sindical (art. 8º, III, CF); e (ii) a substituição processual por associações de caráter civil (art. 5º, LXX, ‘b’). Em ambos os casos, a jurisprudência do STF evoluiu para reconhecer que a atuação da entidade
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1 Sócio do escritório Nelson Wilians Advogados. Mestre em Direito Tributário (LL.M. in Taxation) pela Georgetown University Law Center (GULC). Especialista em Política Tributária Comparada pela Harvard Kennedy School. MBA em Gestão de Negócios Internacionais e Comércio Exterior pela FGV. Especialista em Direito Tributário pelo IBET. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Brasília. Fundador do Grupo de Estudos sobre Política Tributária (GEPT).
2 Sócio do escritório Nelson Wilians Advogados. Especialista em Direito Tributário pela PUC-RS e em Direito Processual Contemporâneo pela PUC-PR. Administrador de Empresas pela UFPR. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (Unicuritiba), é ampla, independente de autorização individual e não restrita a filiados ou jurisdicionados a uma determinada subseção judiciária, especialmente quando se trata de cobrança de valores pretéritos.
Assim, no Mandado de Segurança coletivo se tem a substituição processual (CF, art. 5º, LXX, “b”), e os sindicatos possuem ampla legitimidade extraordinária (CF, art. 8º, III), inclusive para liquidação/execução, sem autorização individual — orientação reafirmada no Tema 823/STF e na Súmula 629. No Tema 1.119/STF, a Corte fixou tese de que “é desnecessária a autorização expressa, a relação nominal e a comprovação de filiação prévia” para a cobrança de valores pretéritos decorrentes de MS coletivo impetrado por associação de caráter civil.
No STJ, a 1ª Seção, no EREsp 1.770.377/RS, ao interpretar sistematicamente o art. 2º-A da Lei 9.494/1997 com o microssistema da tutela coletiva, afastou a leitura que limita a eficácia do título a filiados à época e/ou à jurisdição do órgão prolator em hipóteses de substituição processual (v.g., sindicatos/MS coletivo).
A defesa de direitos por meio de entidades de classe, sejam sindicatos ou associações, é um mecanismo constitucionalmente assegurado e amplamente reconhecido pelo STF. Dois temas em Repercussão Geral, dotados de efeito vinculante, são fundamentais para analisar o alcance dessa nova IN.
Primeiramente, o Tema 823/RG (RE 883.642) estabeleceu a ampla legitimidade extraordinária dos sindicatos para defender em juízo os direitos e interesses coletivos ou individuais dos integrantes da categoria que representam. De forma inequívoca, o STF determinou que essa legitimidade se estende «inclusive nas liquidações e execuções de sentença, independentemente de autorização dos substituídos«. Tal entendimento foi reforçado em decisões recentes, como no RE 1.427.766-AgR, onde a Segunda Turma do STF (Acórdão de 27/05/2024) corrigiu um tribunal de origem que havia exigido autorização especial do sindicato para impetrar mandado de segurança coletivo.
Mais diretamente aplicável à IN 2288/2025, está o julgamento do ARE 1.293.130/RG. Nesse caso, o STF firmou a tese vinculante de que «É desnecessária a autorização expressa dos associados, a relação nominal destes, bem como a comprovação de filiação prévia, para a cobrança de valores pretéritos de título judicial decorrente de mandado de segurança coletivo impetrado por entidade associativa de caráter civil.» (Acórdão de 17/12/2020).
Ao confrontar esses precedentes, fica evidente que os dispositivos da IN RFB nº 2288/2025 – como a exigência de filiação prévia ao trânsito em julgado para fins de habilitação (Art. 105, IV) e a limitação do direito creditório a fatos geradores posteriores à filiação (Art. 103-A, § 1º) – contrariam frontalmente a tese vinculante do STF no ARE 1.293.130/RG. O Supremo Tribunal Federal já se pronunciou expressamente sobre a desnecessidade dessas condições para a cobrança de valores pretéritos em mandados de segurança coletivos impetrados por associações, tornando as restrições da IN um ato de desobediência à autoridade judicial superior.
A condição temporal (art. 103‑A, §1º) e o indeferimento por filiação pós trânsito (art. 105, IV) recriam, por via infralegal, barreiras já afastadas quando se trata de cobrança de valores pretéritos em MS coletivo (Tema 1.119), e se distanciam da linha do STJ sobre substituição processual. Na prática, pode haver negação administrativa de créditos reconhecidos judicialmente com base em filtros não previstos no título — o que fere a coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI) e extrapola o poder regulamentar.
A Administração pode e deve organizar procedimentos (Lei 9.784/1999, art. 2º), mas não pode inovar restringindo direitos materiais já definidos em lei (CTN, art. 97) ou em título judicial transitado em julgado (CTN, art. 156, X). Por isso, a leitura dos arts. 103-A, §1º e 105, IV deve ser conforme a tese do Tema 1.119: para valores pretéritos reconhecidos em MS coletivo, não se pode exigir filiação prévia nem limitar o crédito a fatos geradores posteriores à filiação. A exigência de “abrangência territorial e finalística” deve ser usada para aferir pertinência/representatividade, sem reintroduzir limitações territoriais de eficácia do título afastadas pelo STJ nas hipóteses de substituição processual.
A aplicação automática dos novos filtros pode gerar: (i) indeferimentos de habilitação discrepantes do título judicial; (ii) judicialização do próprio ato de indeferimento; e (iii) descompasso entre RFB e jurisprudência qualificada. O próprio comunicado institucional da RFB sustenta que a IN “alinha” o procedimento ao Tema 1.119; porém, a convergência é parcial e não abrange a filiação prévia/limitação temporal para pretéritos, ponto em que a compatibilização é indispensável.
Em síntese, a intenção da IN de restringir associações genéricas alinha-se ao STF (ARE 1.339.496 AgR/RJ) e cabe ao Poder Judiciário avaliar, caso a caso, eventuais discussões quanto a representatividade das associações e a adequação de sua atuação coletiva, à luz de seus estatutos, categoria, pertinência temática, escopo de finalidade, assegurando o equilíbrio entre legitimidade e efetividade. No entanto, a IN excede ao exigir filiação prévia e limitar crédito a fatos geradores posteriores quanto a valores pretéritos reconhecidos em MS coletivo — hipótese em que o STF (Tema 1.119) dispensa autorização, lista e filiação prévia — e ao se distanciar da linha do STJ sobre substituição processual, que afasta restrições subjetivas/territoriais não previstas no título.
Diante da flagrante contradição com a jurisprudência do STF e os princípios constitucionais, os contribuintes possuem argumentação jurídica para contestar judicialmente a IN RFB nº 2288/2025:
A Constituição Federal de 1988 estabelece o processo legislativo (Art. 59) e a competência do STF para a guarda da Constituição, cujas decisões em repercussão geral ou súmulas vinculantes devem ser observadas por toda a administração pública (Art. 103-A). O princípio da legalidade tributária (Art. 150, I, da CF/88) é um dos pilares do direito tributário e exige que a criação ou restrição de direitos e deveres em matéria fiscal seja feita por lei em sentido formal, não por atos administrativos. O Art. 5º, II, da CF/88, por sua vez, afirma que «ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei». Uma Instrução Normativa é um ato administrativo infralegal, cuja função é detalhar a aplicação de leis, mas não inovar no ordenamento jurídico ou criar restrições a direitos que a Constituição e a lei não preveem.
A RFB, em sua defesa, poderá argumentar que a IN não está criando, modificando ou extinguindo direitos tributários – o que de fato exigiria lei –, mas sim estabelecendo meros requisitos procedimentais e administrativos para a habilitação e o uso de créditos. Contudo, essa distinção não se aplica quando a exigência procedimental se revela tão restritiva a ponto de anular ou limitar substancialmente um direito material já reconhecido por decisão judicial com força vinculante. O Art. 103-A, § 1º, ao limitar o direito creditório a «fatos geradores posteriores à filiação», e o Art. 105, IV, ao indeferir a habilitação se a «filiação (…) tenha ocorrido após o trânsito em julgado do título coletivo». Estes artigos não são meramente procedimentais; eles impõem condições de validade e alcance a um direito de crédito já transitado em julgado, o que efetivamente limita o direito material. Tal limitação substantiva, que contraria diretamente a tese vinculante do STF no ARE 1.293.130/RG, só poderia ser estabelecida por lei em sentido formal, conforme o Art. 97 do CTN. Ao fazê-lo via IN, a Receita Federal excede seu poder regulamentar e desconsidera a força normativa das decisões do STF.
As disposições da IN que tentam reintroduzir a necessidade de filiação prévia (ao trânsito em julgado ou aos fatos geradores) para o aproveitamento de créditos por substituídos em ações coletivas são diretamente confrontadas pelas teses de repercussão geral do STF. O STF pacificou o entendimento de que a atuação de sindicatos e associações em mandados de segurança coletivos se dá por substituição processual, e não representação (Art. 5º, LXX, «b», e Art. 8º, III, da CF/88). Isso significa que a entidade age em nome próprio, defendendo os interesses da categoria ou dos associados como um todo, independentemente de autorização individual ou do momento da filiação (para valores pretéritos em MS coletivo). A tentativa da Receita de impor critérios como a «abrangência territorial e finalística» (Art. 103-A, I e II, combinado com Art. 105, III) pode ser interpretada como uma forma de contornar essa ampla legitimidade, criando obstáculos que não se coadunam com a interpretação constitucional da atuação das entidades de classe.
O Art. 5º, XXXVI, da CF/88, estabelece que «a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada». O Art. 156, X, do CTN, por sua vez, prevê que a «decisão judicial passada em julgado» extingue o crédito tributário. Disposições da IN que limitam o direito creditório a fatos geradores posteriores à filiação (Art. 103-A, § 1º) ou negam a habilitação se a filiação ocorreu após o trânsito em julgado (Art. 105, IV) representam uma tentativa de modificar ou esvaziar os efeitos de decisões judiciais transitadas em julgado. Tais atos, emanados de uma norma infralegal, violam a imutabilidade da coisa julgada, gerando insegurança jurídica e desrespeitando um direito já consolidado para os contribuintes.
Ao limitar efeitos de decisão judicial transitada em julgado, a IN incorre em violação reflexa à Súmula Vinculante 10 (cláusula de reserva de plenário), pois altera a eficácia subjetiva e temporal do título sem observância da reserva de lei e sem possibilidade de afastamento da decisão judicial por órgão administrativo.
O Brasil, enquanto Estado Democrático de Direito (Art. 1º da CF/88), deve garantir a segurança jurídica e a previsibilidade das normas. A aplicação das novas restrições da IN a créditos já reconhecidos ou a compensações realizadas antes de sua publicação, ou que estavam em conformidade com a jurisprudência anterior, atenta contra a segurança jurídica e a confiança legítima dos contribuintes. O Art. 106, I, do CTN, ao tratar da aplicação da lei a ato ou fato pretérito, reforça a irretroatividade da legislação mais gravosa. A IN, ao tentar impor critérios que afetam fatos geradores passados ou expectativas legítimas decorrentes de decisões judiciais, compromete a estabilidade das relações entre o Fisco e o contribuinte.
O poder regulamentar da Administração Pública não autoriza a inovação legislativa. Uma Instrução Normativa deve detalhar a lei, não criar direitos, obrigações ou restrições não previstas nela. Os Art. 103-A, § 1º, Art. 105, III e IV da IN, ao estabelecerem condições de filiação e temporalidade para o reconhecimento de créditos que o STF já considerou desnecessárias, extrapolam a mera função regulamentar. Nota-se que a RFB está reeditando, por via infralegal, medidas que não obtiveram respaldo legislativo formal (como a MP nº 1.303/2024), o que configura um claro excesso de poder regulamentar.
Embora o combate a fraudes seja um objetivo legítimo, as medidas adotadas pela Receita Federal devem ser proporcionais aos objetivos e não podem sacrificar direitos legítimos. As novas regras da IN, ao criarem barreiras excessivas para a habilitação de créditos já reconhecidos por via judicial – como a exigência de filiação em data específica – podem ser consideradas desproporcionais e irrazoáveis. Elas impõem um ônus indevido aos contribuintes que buscaram seus direitos de forma legítima e em conformidade com a jurisprudência, configurando uma violação aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade implícitos no Art. 5º da CF/88.
A aplicação automática dos novos filtros pela Receita Federal pode gerar: (i) indeferimentos de habilitação discrepantes do título judicial; (ii) judicialização do próprio ato de indeferimento; e
(iii) descompasso entre RFB e jurisprudência qualificada. O próprio comunicado institucional da RFB sustenta que a IN “alinha” o procedimento ao Tema 1.119; porém, a convergência é parcial e não abrange a filiação prévia/limitação temporal para pretéritos, ponto em que a compatibilização é indispensável.
A IN RFB nº 2.288/2025 avança na padronização documental e na triagem de associações genéricas, mas excede ao condicionar a habilitação a filiação prévia e a fatos geradores posteriores quando o crédito decorre de MS coletivo com valores pretéritos, contrariando a tese do Tema
1.119 e a orientação do STJ sobre substituição processual. Espera-se que a RFB ajuste a aplicação da norma por interpretação conforme a jurisprudência, à luz dos princípios do art. 2º da Lei 9.784/1999 (segurança jurídica e eficiência), preservando coisa julgada, acesso à jurisdição e isonomia tributária, evitando que contribuintes em idêntica situação recebam tratamento desigual em razão de barreiras formais ou de regulamentações infralegais restritivas.
Conforme exposto neste artigo, em alguns pontos a IN desafia as balizas constitucionais e a autoridade das decisões vinculantes do STF. Assim, os contribuintes afetados por essa normativa poderão questionar sua validade judicialmente.
Não se pode permitir que deliberações administrativas afastem ou mitiguem a jurisprudência vinculante e pacífica da Suprema Corte, pois, em um Estado Democrático de Direito, a lei, a Constituição e a coisa julgada devem prevalecer como garantias básicas de segurança jurídica. Nesse contexto, a atuação de assessoria jurídica especializada — enquanto atividade de meio — revela-se essencial para resguardar os interesses dos contribuintes que tenham a habilitação indevidamente negada, mas se encontrem plenamente enquadrados nas balizas do título judicial e do entendimento das Cortes superiores, contribuindo para a definição de estratégias, alternativas jurídicas e adequada mensuração de riscos. Em última análise, caberá aos órgãos jurisdicionais a palavra final sobre a interpretação válida da norma.